segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Abaixo, mais um texto sobre o tema "Fortal e Halleluyia"


O sagrado e o profano

Beira-Mar. Noites de julho. Os acordes estridentes das guitarras, sob o compasso monocórdico dos tambores, fazem encher a avenida. Marionetes verdes, azuis, amarelas e brancas – até vermelhas – saracoteiam como que endemoninhadas, num ritmo que tanto pode ser caribenho ou indígena, cearense ou baiano. Movidos como molas controladas por sinais siderais, os braços se erguem, as pernas se curvam, os olhos se dilatam e as gargantas rugem, num simulacro de canto e grito. É o Fortal que chega, passa e se repete.

Parque do Cocó. Noites de julho. Outros acordes de outras guitarras e tambores agitam a praça. Sob o comando dos locutores, a massa repete o refrão. As marionetes daqui não têm cores – somente rostos. Rostos famintos, descorados, sulcados até, esperam um milagre que jamais chega. O comando estabelece as regras: "Vamos visitar as barracas, coloquem sua contribuição na cestinha, inscrevam-se no concurso de sacolas". Eventualmente, o comando rege: "God Is Love". "Façam sexo somente pela metade". É o Halleluya que anuncia o Dia do Juízo Final e chega, passa e se repete.

De um lado, temos o negócio dos abadás, das lantejoulas, das mamãe-eu-quero. Do outro, mercantilizam-se indulgências, alugam-se vagas no céu, prometem-se ilusões. Tudo pode ser adquirido à vista ou em suaves prestações. O sagrado e o profano seguem as mesmas regras para alcançar objetivos similares.

Onde se encontra o Poder Público, guardião do patrimônio de todos? Como se permite que o sossego dos cidadãos contribuintes seja agredido dessa forma? O direito de ir e vir é cerceado em nome da festança e da bagunça. No dia seguinte, o lixo que enfeia a avenida é o mesmo que se espalha pelo parque. Sujeira não tem cor nem bandeira e tanto é profana quanto é sagrada. Da farra e da oração restam as chagas.

Os césares romanos mandavam dar ao povo pão e circo, a fim de evitar a rebelião. Hoje, o que vemos é excesso de circo e falta de pão. Aqui e alhures.

Certamente, o muito circo e o pouco pão estão fermentando uma enorme batalha social.


Juracy de Oliveira Paixão
Caros leitores,

Fortaleza sofreu, durante anos, duras agressões ao direito de ir e vir e ao uso de áreas públicas, devido à realização de eventos como Fortal - na Beira-Mar - e Halleluyia, no Parque do Cocó. Ambos impediam a livre circulação das pessoas em áreas públicas: o Fortal impedia, até, que moradores da Beira-Mar tivessem acesso às suas residências e o Halleluyia agredia os circundantes do Parque com música religiosa em alto volume até altas horas da madrugada, num claro desrespeito ao silêncio e ao limite que deve regrar a prática religiosa.
Um intenso movimento da sociedade, com ativa participação da Imprensa, terminou por acionar o Ministério Público e os dois eventos foram deslocados para áreas restritas. Cidadãos como eu escreveram artigos, publicados pela Imprensa, que ajudaram a moblilização da população. O texto a seguir é um dos que escrevi sobre o tema.

O Templo e os Mercadores

O Templo era, em Jerusalém, o lugar mais concorrido. Para lá iam os vendedores ambulantes, os encantadores de serpentes, os contorcionistas e prestigitadores, os pedintes, os abandonados pela sorte, os ditos crentes, os descrentes, os sacerdotes e seus asseclas. Nas escadarias laterais pululavam mulheres da vida. O sumo sacerdote tudo permitia, já que de todos recebia compensações.

Neófito em Jerusalém, o Filho de Deus resolveu visitar o Templo. Assediado pelas marias madalenas, subiu, célere, as escadarias e adentrou ao grande pátio. Assustou-se com a multidão ali presente, serpentes silvando, pedintes rogando pragas por suas misérias, ditos crentes fingindo orar, descrentes assíduos na jogatina, mercadores anunciando suas bugigangas. Ofegante e furibundo, o Filho de Deus arrancou o chicote das mãos de um ambulante que conduzia um jumento e, rodopiando o instrumento , esbravejou tonitruante: “Fora, todos vocês, da Casa do Meu Pai !!”. Os mercadores, e encantadores, e pedintes, e crentes, e descrentes, todos assustados, saíram aos gritos, em debandada. Encarando os sacerdotes que, togados, se deleitavam com vinho, uvas e encostos de cetim, o Filho de Deus os desafiou: “ Fariseus, como permitis tal orgia na Casa do Meu Pai!?”. O sumo sacerdote, sarcástico, inquiriu: “Quem sóis ? como ousas expulsar nossos amigos ??”

O Anfiteatro do Parque do Cocó, durante uma semana do mês de julho de todos os anos, em tudo se assemelha ao Templo de Jerusalém, quando ali se realiza o Halleluya. Os mercadores de hoje vendem indulgências, os encantadores de serpentes travestem-se de purificadores de almas, os ditos crentes bradam frases sem nexo, os descrentes lavam a güela com cerveja e a cuca com maconha, os pedintes de araque rogam as pragas de sempre e as marias madalenas, na flor dos seus 12 anos, desfilam entre os transeuntes, debochadas e disponíveis. O sumo sacerdote de plantão promete mundos e fundos para os que renunciarem aos prazeres terrestres e indica os pontos para coleta das contribuições, fundamentais à obtenção dos tais mundos e fundos. O aluguel de vagas no céu tem tabela e exige fiador.

Os archotes modernos, potentes luzes coloridas, aliados seguros do som estridente e dos gritos histéricos, tiram o sossego da vizinhança que, desprovida de chicotes, nada pode fazer.

A titulo de garantir a livre circulação dos moradores, em boa hora o Fortal foi retirado da Avenida Beira Mar. Falta retirá-lo, agora, das proximidades do Centro Dragão do Mar, patrimônio do povo.
Quando os moradores do entorno do Parque do Cocó terão sossego, no mês de julho??

Já é mais que tempo desse Brasil que se diz laico fazer como fez a França e restringir aos ambientes fechados manifestações e atos religiosos que, a título de agirem em nome da Fé, nada mais fazem do que agredir os direitos do cidadão. A fé é ato e decisão particular e, como tal, deve ser manifestada em ambientes próprios, sem ferir os que dela discordam. Agir de forma diferente nada mais será do que ampliar os limites da hipocrisia, da imposição, do desrespeito ao livre pensamento.

O Anfiteatro do Parque do Cocó, anualmente invadido pelos mercadores da fé, pertence ao povo e não pode ser transformado em pátio de falsos milagres, em palco de crenças hipócritas, em poço de mistificação. Área pública não é passarela, não é mercado, não é templo. Deve ser, pura e simplesmente, cenário de cidadania.

Algo há que ser feito, antes que algum filho de um deus qualquer, sentindo-se agredido e privado de seus direitos, encontre um chicote e resolva, por conta própria, expulsar os invasores.

Juracy de Oliveira Paixão

domingo, 7 de outubro de 2007

As Muralhas da Cidade


Na Idade Média, os despóticos governantes, pressionados pelo povo e temerosos da derrocada, construíam fortificações ao redor das cidades, visando protegê-las contra o inimigo externo. Tais fortificações, muralhas de cal e pedra, transformaram-se em verdadeiras obras primas, muitas delas ainda sobrevivendo ao passar do tempo. Os habitantes , sentindo-se devidamente guardados, levavam sua vida de súditos na tranqüilidade permitida pela miséria e ignorância de então.

Nossa Fortaleza, loira desposada pelo sol, também possui suas muralhas, que a protegem, não do inimigo externo, mas da beleza do mar, do verde das matas ciliares de seus rios, da natureza que a corta e cerca. Tais muralhas, construídas sob o olhar complacente dos governantes democráticos de hoje, impedem que seus habitantes, nem tão miseráveis nem tão ignorantes, possam ver o verde do mar bravio, a beleza das plantas e o correr das águas.

Evidentemente que estou me referindo às barreiras de arranha-céus que se erguem na faixa litorânea e às margens do Cocó, num verdadeiro atentado contra o direito de convivermos em harmonia com a natureza.

Os governantes de hoje, eleitos pelo povo, são incapazes de entender que a proteção que o cidadão precisa não é a das fortalezas da Idade Média, mas a decorrente da conquista democrática e da cidadania. Incapazes – ou coniventes –, tais governantes se limitam a assinar decretos, a promulgar leis e a recolher taxas. O resultado é o isolamento crescente da população em verdadeiros currais de concreto. Esta, indefesa, vê seu patrimônio natural ser dilapidado pela insânia e pela ganância desenfreada dos especuladores.

Cada vez menos nossa vista pode vislumbrar o azul do mar; cada vez menos sobra espaço para as verdes plantas vicejarem. Os rios, espremidos e poluídos, secam.

Os órgãos de fiscalização se limitam ao texto regulamentador de normas e leis arbitrárias, que nada garantem:

Os Órgãos de Classe verificam se a obra em curso tem um técnico responsável. Não importa se o empreendimento é responsável. O que tem valor e a existência corporativista de um técnico assinando a barbárie.
A SEMACE cobra uma análise de impacto ambiental. O que se busca não é evitar esse impacto, mas constatar se a natureza, agredida, agüenta mais uma agressão.
A Prefeitura quer saber se um alvará foi concedido, com o devido preenchimento das petições e recolhimento das taxas. O orçamento municipal precisa ser alcançado, mesmo que seja às custas da natureza.
Os Guardiães das Leis respondem que somente podem agir se provocados, embora os caminhos para a provocação sejam cobertos de pedras pontiagudas.
O Estado, sobranceiro, diz que o problema não é de sua alçada. Como sabido, a omissão é a mais grave forma de conivência.

Cabe ao povo apenas lamentar que a evolução dos tempos tenha feito prosperar a insanidade, a desídia e a absoluta falta de responsabilidade.

O Cocó, e suas margens, pedem socorro. Somente uma cruzada cívica dos cidadãos conscientes poderá garantir a preservação do que ainda nos resta de natureza.

Juracy de Oliveira Paixão
Abaixo sugestões para mensagens natalinas... Usem-nas à vontade.

Mensagens de Natal

No natal dos nossos dias, os sinos não dobram pelos mortos, mas pelos famintos.

Enquanto houver incompreensão, ódio e desamor entre os homens, papai Noel estará com frio, com sede e com fome...

Façamos de cada abraço de confraternização um elo da enorme corrente de amor que deve unir a todos.

Unamo-nos todos contra a violência, pela paz e fraternidade, de modo que, em natais futuros, possa o homem de fato se tornar o rei dos animais.
Juracy Paixão
Apesar de escrito há 35 anos, o texto a serguir continua atual...


Papai Noel está com fome


Aproximam-se as festas de fim de ano, alimentadas pela febre do comprar presente. Passadas ditas festas, restará o apurar das contas. Às lojas, magazines de luminosas vitrines, o lucro farto e fácil; aos pais abastados, a satisfação do desejo realizado nos olhos brilhantes dos filhos sadios; às famílias remediadas, um misto de prazer e de remorso na contemplação das duplicatas a pagar (resultado da ânsia de igualar-se aos ricos nas compras natalinas); aos pobres, a pobreza de sempre.

São meses de preparação e guerra psicológica; todos os veículos de comunicação martelam nos ouvidos do povo (e, particularmente, das crianças) as “melhores” ofertas do Natal, os mais incríveis brinquedos eletrônicos. “Os sinos de Belém” servem de fundo musical para as mais desengonçadas promoções comerciais. O Deus-Menino é fartamente transformado em garoto propaganda de toda uma parafernália de bagulhos que formam a nossa sociedade de consumo. Às crianças ensinam-se como “convencer” o papai a lembrar-se do presente natalino (sempre o mais caro e desinteressante); às mamães indicam-se o endereço da loja mais sofisticada, que possui o mais sofisticado dos estoques (por um preço bem sofisticado); aos pais orientam-se como obter créditos para as compras do fim de ano.

Será o presente de Natal a suprema realização de uma criança? Bastarão, para a alegria dos rostos infantis, a festa e os abraços de um só dia, contra a indiferença de todos os dias? Quantas crianças alcançam esta efêmera felicidade de um dia? Quem festeja e presenteia as dezenas de milhões de crianças cuja alegria está turvada pelo espectro da pobreza, da doença, da fome, da ignorância? Para estas, toda e qualquer campanha (com “doações” a abater do imposto de renda) não passará de simples migalha.

Onde estarão, nas Noites de Natal, os Pobres da África, os Párias de Calcutá, os Pivetes de São Paulo, os Bacuris do Nordeste, os Mutilados do Vietnã, os Desvalidos do Afeganistão, os Drogados de Nova Iorque? Uns, dormindo sob marquises frias e fétidas, outros nos reformatórios estatais e mais outros fuçando lixeiras à procura de restos. Muitos dirão, como aquele pobre de Paris: “Mamãe, traz mais daquelas sobras da feira; elas estavam tão boas ontem à noite...”.

Na verdade, todas estas dezenas de milhões de crianças estarão, no Natal como em qualquer outro dia, perambulando pelas ruas, inchadas de verminoses, cobertas de feridas purulentas, envoltas em trapos sujos. Para elas somente há uma solução: uma profunda mudança de métodos que reformule mentalidades, quebre estruturas falidas e renove a confiança no Ser Humano. Enquanto assim não ocorrer, Papai Noel estará com frio, com sede, com febre e com fome...

Juracy de Oliveira Paixão
Escrito em 1972 para o semanário “O Manacá”, de Valença/BA.
Reescrito em 2001 e publicado em “O Povo” de 23/12/2001, Fortaleza/CE.