quinta-feira, 7 de junho de 2012

Eu, minha Carroça e a Velhice


Acordo cedo, por volta das quatro horas da madrugada. Mesmo que mais quisesse dormir, a necessidade de preparar os músculos para a labuta do novo dia não m’o permitiria.

Manoel, meu dono, me chama de Uisque, embora meu verdadeiro nome seja Ptolomeu. Ganhei essa identidade porque, quando jovem, gostava de brincar fazendo círculos pelo pasto. Meu tio Napoleão costumava dizer que eu era o sol girando ao redor da terra – daí o Ptolomeu. Meu tio levou o nome de Napoleão porque ele era um guerreiro nato: para laçá-lo, haveria de ter correria.

Manoel me apelidou de Uisque por pura frustração, já que somente pode beber pinga desdobrada. Resolveu ter perto de si ao menos um uisque de quatro patas. Ainda bem que o meu uisque é com U, pois abomino gringos e seria um desastre moral carregar um W no apelido. Já o Manoel, meu dono, é chamado de Mané Carroceiro o que, no mínimo, é uma falsidade pois carroceiro sou eu que passo os dias a uma carroça atrelado – carroça pequena, baixa, mas pesada.

Gosto da minha carroça. Aliás, eu é que sou dela, já que ela é a minha razão de ser. Atrelado vou passear pelas ruas, ao comando do chicote do Manoel. Não, Manoel não me bate mas me mostra o suplício a cada passo, aos gritos de “anda, burro preguiçoso!” Engraçado, o preguiçoso sou eu, que puxo a carroça, enquanto que ele vai nela sentado, a pitar cigarro e a me obrigar a ser fumante passivo.

Adoro a rua: vejo bichos de quatro e de duas patas, respiro cheiro de coisas e também fedor de monturo e me distraio sendo ofendido pelos motoristas que passam. Disfarçadamente rio-me deles, já que são obrigados a se desviarem de mim, o que me dá um certo ar de auto-confiança. Minha carroça também serve para proteger-me de alguma eventual batida traseira, visto que das dianteiras cuida o Manoel.

Todos os dias paramos – eu, a minha carroça e o meu dono – em frente à casa de Santinha. Lá, ganho água e sabugo de milho, além de um bom repouso, já que o Manoel entra para fazer travessura com a dona da casa e demora bem uma meia hora. Quando ele sai, sempre está com ar de satisfação mas não dispensa um “anda, burro preguiçoso...”.

Até hoje, apesar dos meus bons dez anos, nunca fiz travessura, não por falta de apetite, mas por absoluta ausência de oportunidade e parceria. Quando eu era adolescente, tinha uma amiga, a mulinha Cleópatra, quase da minha idade, e cheguei a pensar que aquela seria a minha companheira de travessuras, quando fosse hora, mas nosso dono a vendeu e nunca mais eu soube dela. O nome Cleópatra lhe foi atribuído porque ela costumava saltitar com o focinho empinado, tal e qual uma bela rainha. Aquela foi, até hoje, meu único e platônico amor. Bem diferente de Manoel, a quem já vi com a Imaculada, a Pureza, e agora sempre com a Santinha.

Meu pai foi um garanhão alazão muito simpático e nada esnobe, a não ser o porte. Ele tinha por nome Casanova, devido ao fato de ser muito namorador. Já minha mãe, a jumenta Safira, chamava-se assim por ser uma jóia de animal: meiga, pequena e carinhosa como somente ela sabia ser. Ela trabalhava no transporte de água para abastecer a casa-grande de seu dono, o fazendeiro Tubarão, apelido decorrente da fama que ele tinha de se apoderar das terras vizinhas mediante ameaça do seus jagunços. Meus pais morreram antes que eu atingisse a adolescência, mas recordo-me de ambos. Diziam que meu pai foi corredor antes de se dedicar à montaria de fim de semana, lazer predileto de seu último dono, o deputado Juca, apelidado de Novelo, porque sempre estava enrolado com alguma coisa. Eu nasci já na posse de Juca, que comprou a fazenda de Tubarão, dizem que com dinheiro de caixa dois. Meu segundo dono foi o Padre Romão, que criava um belo rapazote chamado Narciso, de quem diziam ter um caso com o seu protetor. De minha parte, nunca presenciei nada de anormal, ao menos para os meus parâmetros de burro e bicho. Terminei sendo dado de presente ao Narciso que logo me vendeu ao Manoel pela ninharia de oitocentos reais. Digo ninharia porque acho que eu valia e valho muito mais do que isso.

Eu não gosto do fim de expediente, devido à dúvida que sempre me bate: será que a corda vai ser curta ou comprida!? Explico: terminada a faina, o Manoel me desatrela da carroça, amarra uma corda no meu pescoço e me leva para o quintal de sua casa, onde prende a corda num moirão liso. Se a corda for comprida, menos mal, pois poderei me deslocar até o mamoeiro e nele roçar as costas, quando ataca coceira. Se for a corda curta, é uma agonia só, pois o moirão liso não serve para roçar e a solução que encontro é espojar-me no chão poeirento, o que, quase sempre, me faz fungar o focinho, devido à rinite causada pela poeira, já que sou alérgico. Será rinite ou burrite!? Afora isso e desde que não chova, até que durmo bem, pois dos mosquitos cuida o rabo. Chovendo, não tem mosquito mas bate uma frieza que fico toda a noite a arrepiar-me e a fazer “brrruuuu”. Isso sai inconscientemente. Não consigo evitar.

À noite, faço um lanche com capim seco e casca de mamão, isso quando o Manoel se lembra de servir-me antes de encher a cara. Vocês nem imaginam, mas um dia ele chegou a me oferecer um drinque: ”Toma, Uisque, vê como pinga é bom!” Recusei, pois sou abstêmio.

Durante as horas de sono, a única aporrinhação fica por conta do compadre Bispo, que cisma de vir latir perto de mim. Por causa disso, já brigamos algumas vezes e lhe apliquei uns bons coices. O compadre ganhou o nome Bispo porque sempre late no mesmo tom.

Posses eu não tenho, a não ser que considerem como meus os arreios que me são aplicados para atrelar-me à carroça e a corda que me prende ao moirão. Isso seria apropriação indébita, já que tais peças são de propriedade legal do Manoel e eu fui criado dentro do espírito da honestidade, o que me impede de apropriar-me do que não me pertence.

Lembranças, possuo muitas: lembro-me da queda que levei ao tentar andar - mal nascera - e só não me machuquei devido ao apoio que me deu minha mãezinha Safira. Lembro-me dos passeios que fazia com o Narciso, esse montado a pelo, pois eu ainda era franzino e não tinha sela que se ajustasse a mim. Ainda bem, pois sela é apetrecho fino que combina com cavalo besta e não com burro natural como eu. Além do mais, quando o montador usa sela também usa espora, para mostrar seu domínio sobre a montaria. Lembro-me do cajueiro que havia perto da casa-grande, sob cuja sombra eu gostava de dormitar, após fartar-me com os cajus caídos, já todos quase passados. Era uma farra aquilo. Lembro-me do susto que levei ao entrar na cidade, após ser comprado pelo Manoel. Vim de caminhão e quase caí da carroceria, embora estivesse amarrado pelas patas e pescoço. Lembro-me com muita saudade do capim verde que abundava na fazenda e que hoje somente vejo quando Manoel me leva até a BR. Melhor dito, quando eu o levo, pois ele é quem vai instalado no banco da carroça que eu puxo. Ele apenas indica o caminho com o chicote e aos brados de “anda, burro preguiçoso...”.

Na minha vida atual, a única coisa que me chateia é quando os amigos do Manoel nos encontram na rua e dizem: “Mané, deixa de ser burro. Vende esse burro e compra uma égua. Elas são mais espertas e mais trabalhadoras”. Acho isso uma atitude racista e preconceituosa. Afinal, quem é o burro para eles? Eu ou o Manoel? E, porque não sugerem a compra de uma mula?

Eu não tenho preocupações acerca da velhice e até a desejo, embora ainda esteja na meia idade. Sei que, quando envelhecer e não mais a carroça me quiser, vou ser solto por aí, a vagar pelos pastos – desculpem, pelas ruas. Ficarei livre da corda e poderei passear pelos terrenos baldios. Quem sabe, em um deles encontrarei a Cleópatra, minha amiga da adolescência, e então poderemos fazer travessuras!? Nos terrenos baldios sempre se acha capim verde, sabugo de milho, casca de mamão e sombra. Precisarei apenas tomar cuidado com o trânsito mas, em contrapartida, por ser idoso, terei preferência nas passagens de pedestres – ou será de patestres!?
Fico a pensar no que será do Manoel, quando ele ficar velho...???
Juracy de Oliveira Paixão
28.06.2006