quarta-feira, 11 de maio de 2016

A viagem de Aristeu rumo ao Desconhecido

                                                                                                  Juracy Paixão (Mar/2003)

Dois dias após o Golpe de 31 de Março, encontrei Aristeu na Avenida Getúlio Vargas, próximo ao Farol da Barra, dentro de um táxi de um militante do Partido. Esse encontro fora acertado ainda no dia 31, na sede do Partido, na Avenida Sete de Setembro, próxima ao Relógio de São Pedro. Trocamos algumas idéias, deu-me ele algumas instruções e nos despedimos: ele, para a clandestinidade absoluta; eu, para o isolamento dos que ficaram sem rumo. Naquela época, Aristeu era o Secretário Geral do Partido na Bahia e membro do Comitê Central. Eu era membro da direção estadual e ocupava o cargo de Contato com o Interior (eu era um comunista profissional).

Passaram-se meses. Já sendo procurado pelo DOPS, entro na clandestinidade. Morava, com Helenice e meus filhos, em uma casa alugada pelo Partido, na Vila Paulista, uma travessa entre o Corta-Braço e o Pero Vaz. Pela minha casa passaram, escondidos, Américo Carvalho, Percílio e Pedro de Tiano. Dentro do Partido, somente Aurélio Vellame sabia do meu endereço. Fora do Partido, apenas meu pai o conhecia.

Em meados de julho de 64, compareci a um ponto, na Barroquinha, para os acertos sobre uma reunião a ser realizada com outros membros da direção estadual, ainda soltos. Seria uma reunião de reorganização do Partido, com a presença de um representante da Direção Nacional, Dácio Lopes, sindicalista carioca a serviço do Partido (estivera um tempo em Salvador, antes do Golpe. Retornara ao Rio por volta de janeiro de 1964 e, agora, viera com instruções).

A reunião deu-se em um sítio próximo a Campinas, na saída de Salvador. Lá estavam membros do partido de Sergipe, Alagoas e Bahia. O objetivo da reunião era a reestruturação nos respectivos estados e a formação de um elo que permitisse eventual articulação regional. Dácio comandou a reunião, que durou dois dias.

Após a reunião, Dácio disse-me que tinha uma tarefa especial para mim: retirar Aristeu da Bahia, onde ele era procurado como um troféu, e encaminhá-lo para o Rio de Janeiro, onde, além de ficar mais seguro (já que lá não era conhecido), estaria em contato permanente com os demais dirigentes nacionais. Segundo Dácio, a suposição mais concreta era de que Aristeu poderia estar escondido em Irará, “onde tinha familiares e amigos extra-partido”. Discordei da tese, por dois motivos: no Irará de então, comunistas não tinham amigos extra-partido (embora fosse a cidade considerada a Moscouzinha da Bahia) e os parentes de Aristeu eram por demais conhecidos para que se arriscassem a escondê-lo. Diante da insistência, contudo, dispus-me a efetuar a busca.

Como, àquela altura, eu também já estava sob procura policial, fui a Irará via Feira de Santana, onde peguei um táxi: cheguei ao portão dos fundos da casa de papai por volta das oito horas da noite de um dia não recordado – entre meados de julho e meados de agosto de 1964. Papai me recebeu temeroso: sabia do que me rondava e sabia como a cidade estava sendo vigiada. Falei-lhe da minha tarefa e ele, de pronto, respondeu: “Se Aristeu estivesse aqui, eu saberia. Mas, vamos procurar Alberto Nogueira”. Preferi procurar, primeiro, Raul Cruz. Naquela mesma noite, fui ao Bongue, com papai, falar com Raul. A opinião de Raul era a mesma que eu tinha manifestado ao Dácio: Aristeu não poderia estar em Irará, sobretudo sem que ele - Raul - disso soubesse. Falei de Alberto Nogueira e Raul concordou que valia a pena conversar com ele. Fui, com papai, procurar Alberto. Ele foi incisivo: ”Aristeu não mais deu notícias e não está por aqui. Talvez Amadeu possa ser de alguma ajuda”. Era uma importante informação, já que Amadeu morava em Feira, onde havia de ter mais recursos para um possível esconderijo insuspeito.

Meu relacionamento com Amadeu não passava do simples conhecimento de um filho de Irará, jovem, em relação a um importante cidadão da terra. Seriam remotas as possibilidades de Amadeu me dar alguma informação. Optei por pedir a papai que fosse a Feira de Santana conversar com Amadeu e falar-lhe da minha tarefa, reforçando a necessidade de obter a ajuda dele para localizar Aristeu. Papai era um velho amigo de Amadeu, desde os tempos em que este comercializava couros em nossa cidade. Assim, as chances de uma conversa produtiva eram maiores do que se fosse diretamente comigo. Acertei com papai que ele, assim que falasse com Amadeu, me procuraria em Salvador para me dar uma posição. Voltei a Salvador, no dia seguinte, de carona na boleia de um caminhão.

Uns dias depois, recebo a visita de meu pai com a resposta de Amadeu: eu deveria ir a Feira de Santana na próxima segunda-feira, com tempo para lá permanecer por uns dois a três dias e procurá-lo em uma loja que vendia objetos de couro (ou malas, não me recordo ao certo). Assim fiz.

Encontrando Amadeu, este me orientou: “Procure-me, lá em casa, por volta das duas horas da tarde”. Às duas em ponto, procurei Amadeu em sua casa. Ele me apresentou a um agricultor de uns 50 anos de idade e me falou: ”Acompanhe a ele sem fazer perguntas. Tudo dará certo”. Saí na companhia do agricultor (cujo nome não me recordo) e embarcamos em uma caminhão (tipo pau-de-arara) que se encontrava na Praça Fróes da Mota. Viajamos cerca de duas horas e saltamos do caminhão em uma estrada de barro, junto a uma cancela. O caminhão seguiu em frente e nós fomos ao encontro de um rapaz que segurava dois cavalos selados. A cavalo, por volta de mais uma hora de viagem, chegamos a uma pequena casa de fazenda, onde me dei de frente com Aristeu Nogueira, o chefe do PCB na Bahia. Aristeu estava de bom humor e com aparência sadia. Abraçamo-nos e fomos conversar, sozinhos, em uma varanda lateral. Falei-lhe da tarefa que recebera e da necessidade urgente de ele sair da Bahia. Concordou, mas perguntou pelo plano de saída. Respondi-lhe que o plano seria traçado a partir daquele momento, já que eu o havia encontrado. Acertamos que eu daria notícias através de Amadeu, com os detalhes necessários para a sua retirada. Perguntei se ele tinha um documento com foto, pois seria preciso obter uma carteira de identidade com um nome insuspeito, para eventual batida policial durante a sua viagem. Ele não tinha documento em mãos, mas tinha uma foto. Era o suficiente.

No dia seguinte, retornei a Feira, primeiro a cavalo, depois numa kombi de passageiros. Chegado a Salvador, marquei um encontro com Dácio e traçamos o plano: Aristeu sairia de Feira no carro emprestado por um companheiro de partido e iria comigo até a cidade de Medina, em Minas Gerais. Lá, um outro companheiro o apanharia para levá-lo até o Rio de Janeiro. O endereço que ele deveria procurar no Rio, eu somente tomaria conhecimento no dia em que fosse apanhá-lo em Feira. Medida de segurança. Na mesma semana, Dácio conseguiu o empréstimo do fusca vermelho de Luís Contreiras, conhecido comunista da velha guarda. O carro seria emprestado com motorista de confiança, sem que nem mesmo seu dono soubesse a finalidade do empréstimo. Combinado o dia, voltei a Feira para acertar com Amadeu os detalhes: Aristeu deveria estar em Feira na madrugada da segunda-feira seguinte (segunda-feira era o dia da tradicional feira da cidade, o que aumentava a segurança). Por volta das quatro horas da manhã eu o apanharia. Amadeu decidiu que o local do encontro seria a sua própria casa. Achei perigoso, mas não havia outra possibilidade.

No dia aprazado, saí de Salvador por volta das duas horas da madrugada, na companhia de um rapaz desconhecido, que era o motorista de Luís Contreiras. Mal nos falamos. Paramos o fusca umas quadras antes da casa de Amadeu e eu fui a pé, encontrar Aristeu. Eram quatro horas da manhã. Ele já estava com uma sacola arrumada, café tomado e, tenso, na espera. Conforme combinado, assim que saímos no portão, o fusca se aproximou e iniciamos nossa viagem. Entreguei-lhe, logo, sua nova identidade (não me recordo do nome usado) Quanto ao endereço no Rio, minha instrução era somente entregar-lhe quando nos despedíssemos, em Medina.

Seguimos viagem pela BR-116 e somente paramos em Jequié para abastecer, num posto de estrada. Aristeu, no banco de trás, conversava amenidades, conforme havíamos combinado.

Aristeu sofria de um problema nos pés, o que o obrigava a usar uma palmilha especial nos sapatos. Seus sapatos estavam sem tal apetrecho. Resolvemos entrar em Vitória da Conquista para comprar a palmilha. Paramos em frente a uma sapataria e eu fui efetuar a compra. Ao retornar ao carro, Aristeu estava escondido por trás dos bancos. Perguntei-lhe o que houve e ele respondeu: “Imagine que passou aí pelo passeio um conhecido meu, de quem se desconfia que anda denunciando gente. Tomei um susto enorme e me escondi. Ele não teve tempo de me ver”.

Seguimos viagem até Medina. No posto rodoviário da divisa BA/MG não tivemos dificuldade alguma. Não me recordo da hora da chegada. Fomos direto para uma pensão já previamente definida, onde ele saltou. Aí, entreguei-lhe o endereço do seu destino no Rio, a senha para o novo acompanhante e algum dinheiro (não me recordo quanto). Voltei para Salvador. Terminara a minha aventura e a minha tarefa.

Parti para Moscou em meados de outubro de 64. Somente voltei a ver Aristeu em 1986, quando ele foi advogado do divórcio de meu casamento com Helenice (sobrinha de Elsa de Aristides). Nessa ocasião, conversamos por muitas horas. Fiquei, então, sabendo do resto da saga: o companheiro que deveria encontrá-lo em Medina não apareceu. Após esperar por dois dias, ele achou que o tal companheiro poderia ter sido preso e o melhor era apressar sua saída para o Rio, mesmo sozinho. Partiu de ônibus. Ao chegar à rodoviária do Rio, deu o endereço a um taxista. Durante o trajeto pelas ruas do Rio, notou que o taxista o olhava com insistência. Em determinado momento, o taxista parou o carro e falou-lhe: “O companheiro é comunista? Se é. não vá para este endereço. A polícia deu uma batida lá, na semana passada, e prendeu algumas pessoas”. Aristeu contou-me que, diante da surpresa e do inusitado, preferiu abrir o jogo: “Sou comunista e estou procurando um esconderijo”. O motorista respondeu-lhe que também pertencia ao Partido e que iria levá-lo para sua casa, até que ele conseguisse estabelecer novo contato com o Partido. O contato se deu após algum tempo e Aristeu deu início a uma nova saga.


Meu papel, eu o cumpri e dele me orgulho. Não digo que salvei Aristeu da morte prometida, mas contribuí para que sua vida de revolucionário fosse preservada.

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