Eu, minha Carroça e a
Velhice
Acordo cedo, por volta das quatro horas da madrugada.
Mesmo que mais quisesse dormir, a necessidade de preparar os músculos para a
labuta do novo dia não m’o permitiria.
Manoel, meu
dono, me chama de Uisque, embora meu
verdadeiro nome seja Ptolomeu. Ganhei
essa identidade porque, quando jovem, gostava de brincar fazendo círculos pelo
pasto. Meu tio Napoleão costumava
dizer que eu era o sol girando ao redor
da terra – daí o Ptolomeu. Meu
tio levou o nome de Napoleão porque
ele era um guerreiro nato: para laçá-lo, haveria de ter correria.
Manoel me
apelidou de Uisque por pura
frustração, já que somente pode beber pinga
desdobrada. Resolveu ter perto de si ao menos um uisque de quatro patas. Ainda bem que o meu uisque é com U, pois
abomino gringos e seria um desastre moral carregar um W no apelido. Já o Manoel, meu dono, é chamado de Mané Carroceiro o que, no mínimo, é uma
falsidade pois carroceiro sou eu que passo os dias a uma carroça atrelado –
carroça pequena, baixa, mas pesada.
Gosto da
minha carroça. Aliás, eu é que sou dela, já que ela é a minha razão de ser.
Atrelado vou passear pelas ruas, ao comando do chicote do Manoel. Não, Manoel
não me bate mas me mostra o suplício a cada passo, aos gritos de “anda, burro preguiçoso!” Engraçado, o
preguiçoso sou eu, que puxo a carroça, enquanto que ele vai nela sentado, a
pitar cigarro e a me obrigar a ser fumante passivo.
Adoro a rua: vejo bichos de quatro e de duas
patas, respiro cheiro de coisas e também fedor de monturo e me distraio sendo
ofendido pelos motoristas que passam. Disfarçadamente rio-me deles, já que são
obrigados a se desviarem de mim, o que me dá um certo ar de auto-confiança.
Minha carroça também serve para proteger-me de alguma eventual batida traseira,
visto que das dianteiras cuida o Manoel.
Todos os
dias paramos – eu, a minha carroça e o meu dono – em frente à casa de Santinha. Lá, ganho água e sabugo de
milho, além de um bom repouso, já que o Manoel entra para fazer travessura com a dona da casa e demora
bem uma meia hora. Quando ele sai, sempre está com ar de satisfação mas não
dispensa um “anda, burro preguiçoso...”.
Até hoje,
apesar dos meus bons dez anos, nunca fiz travessura,
não por falta de apetite, mas por absoluta ausência de oportunidade e parceria.
Quando eu era adolescente, tinha uma amiga, a mulinha Cleópatra, quase da minha idade, e cheguei a pensar que aquela
seria a minha companheira de travessuras,
quando fosse hora, mas nosso dono a vendeu e nunca mais eu soube dela. O nome Cleópatra lhe foi atribuído porque ela
costumava saltitar com o focinho empinado, tal e qual uma bela rainha. Aquela
foi, até hoje, meu único e platônico amor. Bem diferente de Manoel, a quem já
vi com a Imaculada, a Pureza, e agora sempre com a Santinha.
Meu pai foi
um garanhão alazão muito simpático e nada esnobe, a não ser o porte. Ele tinha
por nome Casanova, devido ao fato de
ser muito namorador. Já minha mãe, a jumenta Safira, chamava-se assim por ser uma jóia de animal: meiga, pequena e carinhosa como
somente ela sabia ser. Ela trabalhava no transporte de água para abastecer a
casa-grande de seu dono, o fazendeiro Tubarão,
apelido decorrente da fama que ele tinha de se apoderar das terras vizinhas
mediante ameaça do seus jagunços. Meus pais morreram antes que eu atingisse a
adolescência, mas recordo-me de ambos. Diziam que meu pai foi corredor antes de
se dedicar à montaria de fim de semana, lazer predileto de seu último dono, o
deputado Juca, apelidado de Novelo, porque sempre estava enrolado
com alguma coisa. Eu nasci já na posse de Juca,
que comprou a fazenda de Tubarão,
dizem que com dinheiro de caixa dois.
Meu segundo dono foi o Padre Romão, que criava um belo rapazote chamado
Narciso, de quem diziam ter um caso
com o seu protetor. De minha parte, nunca presenciei nada de anormal, ao menos
para os meus parâmetros de burro e bicho. Terminei sendo dado de presente ao
Narciso que logo me vendeu ao Manoel pela ninharia de oitocentos reais. Digo
ninharia porque acho que eu valia e valho muito mais do que isso.
Eu não
gosto do fim de expediente, devido à
dúvida que sempre me bate: será que
a corda vai ser curta ou comprida!? Explico:
terminada a faina, o Manoel me desatrela da carroça, amarra uma corda no meu
pescoço e me leva para o quintal de sua casa, onde prende a corda num moirão
liso. Se a corda for comprida, menos mal, pois poderei me deslocar até o
mamoeiro e nele roçar as costas, quando ataca coceira. Se for a corda curta, é
uma agonia só, pois o moirão liso não serve para roçar e a solução que encontro
é espojar-me no chão poeirento, o que, quase sempre, me faz fungar o focinho,
devido à rinite causada pela poeira, já que sou alérgico. Será rinite ou burrite!? Afora isso e desde que não
chova, até que durmo bem, pois dos mosquitos cuida o rabo. Chovendo, não tem
mosquito mas bate uma frieza que fico toda a noite a arrepiar-me e a fazer “brrruuuu”. Isso sai inconscientemente.
Não consigo evitar.
À noite,
faço um lanche com capim seco e casca de mamão, isso quando o Manoel se lembra
de servir-me antes de encher a cara.
Vocês nem imaginam, mas um dia ele chegou a me oferecer um drinque: ”Toma, Uisque, vê como pinga é bom!”
Recusei, pois sou abstêmio.
Durante as
horas de sono, a única aporrinhação fica por conta do compadre Bispo, que cisma de vir latir perto de
mim. Por causa disso, já brigamos algumas vezes e lhe apliquei uns bons coices.
O compadre ganhou o nome Bispo porque
sempre late no mesmo tom.
Posses
eu não tenho, a não ser que considerem como meus os arreios que me são
aplicados para atrelar-me à carroça e a corda que me prende ao moirão. Isso
seria apropriação indébita, já que tais peças são de propriedade legal do
Manoel e eu fui criado dentro do espírito da honestidade, o que me impede de
apropriar-me do que não me pertence.
Lembranças, possuo muitas: lembro-me da queda que levei ao
tentar andar - mal nascera - e só não me machuquei devido ao apoio que me deu
minha mãezinha Safira. Lembro-me dos
passeios que fazia com o Narciso, esse montado a pelo, pois eu ainda era
franzino e não tinha sela que se ajustasse a mim. Ainda bem, pois sela é
apetrecho fino que combina com cavalo besta e não com burro natural como eu.
Além do mais, quando o montador usa sela também usa espora, para mostrar seu
domínio sobre a montaria. Lembro-me do cajueiro que havia perto da casa-grande,
sob cuja sombra eu gostava de dormitar, após fartar-me com os cajus caídos, já
todos quase passados. Era uma farra aquilo. Lembro-me do susto que levei ao
entrar na cidade, após ser comprado pelo Manoel. Vim de caminhão e quase caí da carroceria, embora estivesse
amarrado pelas patas e pescoço. Lembro-me com muita saudade do capim verde que
abundava na fazenda e que hoje somente vejo quando Manoel me leva até a BR. Melhor dito, quando eu o levo, pois
ele é quem vai instalado no banco da carroça que eu puxo. Ele apenas indica o
caminho com o chicote e aos brados de “anda,
burro preguiçoso...”.
Na minha
vida atual, a única coisa que me chateia é quando os amigos do Manoel nos
encontram na rua e dizem: “Mané, deixa de
ser burro. Vende esse burro e compra uma égua. Elas são mais espertas e mais
trabalhadoras”. Acho isso uma atitude racista e preconceituosa. Afinal,
quem é o burro para eles? Eu ou o Manoel? E, porque não sugerem a compra de uma
mula?
Eu não tenho
preocupações acerca da velhice e até a desejo, embora ainda esteja na meia
idade. Sei que, quando envelhecer e não mais a carroça me quiser, vou ser solto
por aí, a vagar pelos pastos – desculpem, pelas ruas. Ficarei livre da corda e
poderei passear pelos terrenos baldios. Quem sabe, em um deles encontrarei a Cleópatra, minha amiga da adolescência,
e então poderemos fazer travessuras!?
Nos terrenos baldios sempre se acha capim verde, sabugo de milho, casca de
mamão e sombra. Precisarei apenas tomar cuidado com o trânsito mas, em
contrapartida, por ser idoso, terei preferência nas passagens de pedestres – ou
será de patestres!?
Fico a
pensar no que será do Manoel, quando ele ficar velho...???
Juracy
de Oliveira Paixão
28.06.2006
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