Nós, Os Bichos...
Que triste sina esta de ser galinha
Nasci
em uma Sexta-feira da Paixão. Já vim ao mundo piando.
Comigo vieram três irmãs e dois irmãos. Após um có-có-có de controle, minha mãe abandonou as cascas rachadas dos
nossos casulos e nos instou a ciscar. Assim teve início nossa amamentação.
Minha
mãe chamava-se Messalina e ela bem
que merecia o seu imponente nome: dava-se – literalmente – para todos os galos
do nosso terreiro, vendia-se aos galos dos terreiros vizinhos por tão somente
uma ou duas minhocas e pouco se lixava para o ato e o fato de se encher de
filhotes sem pai conhecido. Costumava dizer que, como galinha, somente lhe
restavam duas atitudes: “ser boa de choca
e cria ou marchar para a panela de água quente”. Além do mais, afirmava: ”se não me dou, os galos me tomam, mais
fortes como são”.
Segundo
informação duvidosa da minha mãe Messalina,
meu pai fora o galo Maroto, um macho
de pescoço pelado, crista grande avermelhada e esporões de arrepiar qualquer
vivente. Contava ela que todas as galinhas do terreiro eram apaixonadas pelo Maroto, mas ele tinha lá suas
preferências: gostava das polacas, de pouca pena e rabo curto.
Meu
pai, caso tenha sido o Maroto, morreu
de gogo antes da minha vinda à luz e minha mãe foi atropelada por uma carroça,
mal eu entrava na adolescência. Não pude, tampouco, conviver com minhas irmãs e
irmãos. As manas foram levadas para a feira da rua e, lá, vendidas. Os manos
foram assados na brasa, durante uma festa de aniversário. Sobrevivi à venda
porque, no dia da caçada das minhas irmãs, sumi de circulação, subindo num
telheiro que havia ao lado do poleiro – sem
que nem pra quê. Mera coincidência: cansados de me procurar, os nossos
donos contentaram-se somente em colocar as manas no caçuá de viagem.
Nosso
terreiro é bem provido: tem pé de araçá, pé de aroeira, pé de sapoti; tem um
chiqueiro com um casal de leitões e quatro filhotes; tem o nosso poleiro de
quatro degraus, além do cercado onde ficam os ninhos de chocar. Sim, porque
chocar é a maldição e a salvação de toda galinha. Eu, na minha parca
existência, já estou na quinta choca e já perdi a contas dos pintos que
produzi. Se eu ganhasse uma bolsa
maternidade, estaria milionária. Chocar é uma aporrinhação: fica-se
acocorada uma eternidade sobre uma ruma de ovos que nem são nossos, a esperar
que os danados se rompam e dêem crias à luz. Mal se bebe e quase não se come.
Nascidos os diabinhos, lá vamos nós a
ciscar com eles – quanto mais cedo aprendem o ofício da sobrevivência, mais
cedo a gente se liberta da tarefa de mãe. Mal passado o resguardo do choco
findo, há que se livrar dos galos , a fim de que tudo não recomece. Vida de
galinha se resume nisso: ciscar, cocoricar, ser tomada pelos galos ou a eles se
dar como fazia minha mãe Messalina, e
recomeçar tudo – a fim de não cair no espeto sobre brasas, quando se escapa de
uma panela fervente.
De
tanto dar – querendo ou não – os humanos, nossos donos, apelidaram suas
aventureiras de galinhas, o que não
passa de uma grande injustiça com a nossa raça. Explico: nosso dono tem uma
empregada (ela se diz secretária...)
chamada Gioconda, que é casada com o
lenhador Cornélio. Todo santo dia,
mal o pobre do marido ombreia o machado e vai pro mato, a adúltera se aperta com a primeira calça que aparece:
do vaqueiro ao patrão, do leiteiro ao sacristão. E faz essa leviandade com um
ar de deboche e um sorriso mais pra cínico do que pra enigmático. Nesse
contexto, as humanas aventureiras deveriam ser apelidadas de giocondas e não de galinhas – pobres de
nós.
Aqui
no sítio, do que não podemos nos queixar é de falta de comida: sai milho duas
vezes por semana, pirão de farinha todo dia, casca de fruta vez sim e vez não,
e ainda há o resultado de nosso ciscado: formigas, baratas, minhocas, lagartas,
cocô dos bichos e dos meninos, semente disso e daquilo. É uma dieta bem
equilibrada.
Para
nós, o melhor dia é após a feira na rua: sempre volta uma ou outra que não foi
vendida e conta as novidades. Minha prima Maricota,
mesmo, voltou esta semana com uma estória pra lá de fantasiosa. Como ela é
muito fofoqueira, é preciso dar um bom desconto. Espalhou aqui no terreiro que,
num intervalo da feira, conseguiu manter conversação com duas galinhas brancas
que lá estavam á venda. As tais brancas
contaram serem oriundas de um negócio
chamado granja. Disseram que nessa
tal granja tudo é na base de grupos,
formados por algumas poedeiras e uns poucos galos por grupo. Cada poedeira,
depois de ser arrochada por um galo,
é transferida para um novo local, com água pingando e ração bem à boca. Assim
que se livram do ovo, esse é levado para uma galinha mecânica chamada chocadeira
e lá nascem os pintinhos. Mal os filhotes alcançam a puberdade, os machos são
separados em lotes e uma parte vai para um matadouro
onde se transformam em “frangos
congelados”.Os restantes que escapam da chacina vão abastecer os grupos das poedeiras, em substituição dos velhos, seus
prováveis pais, que são condenados à
brasa. As fêmeas seguem o destino habitual das galinhas: dar-se ou serem tomadas, pôr ovos e
chocar. A estória carece de confirmação, até porque acho difícil galinha branca
ter essa intimidade toda com uma mestiça igual à Maricota.
Por
falar em frango, aqui temos outra injustiça dos humanos: apelidam gol fácil de frango e o goleiro que o sofre de frangueiro. Sabendo como é trabalhoso pegar esses nossos
parentes/irmãos quando soltos no terreiro – os danados são rápidos e velozes na
carreira – frango era para ser apelido
de gol difícil.
Nosso
expediente no terreiro é monótono e repetitivo: acordar com o ucuruncucum dos galos; bater asas para
descer do poleiro; ciscar, logo, os molhados da madrugada para papar as
minhocas em mudança; comer o pirão de farinha matutino; dar-se a , pelo menos,
dois ou três galos por dia; comer, ciscar; comer,ciscar; subir num galho do pé
de araçá para espiar a safada da Gioconda
se atracando com a calça do momento. Se há choco, é chocar
e chocar. Se há pinto, é andar ao som monocórdio do nosso próprio co-có-có, a ver se os pestinhas aprendem a arte da cisca e nos
dão uma folga. Ao fim do dia, baixado o sol, voltar para o poleiro e dormir com
os olhos meio fechados e meio abertos. Importante é torcer – e até rezar pro santo protetor das galinhas
- para que não falte carne de vaca na cozinha do sítio. Se faltar, aí somente a
sorte salva.
Ia-me
esquecendo: vez por outra ouve-se um co-có-CÓ-có-có-CÓ de dois tons, anunciando
mais um ovo no mundo.
Susto
por aqui afora nos casos de falta de carne de vaca, somente nas noites de lua
cheia: a raposa Sinistra resolve vir
nos aperrear. A felicidade é que, mal ela chega, a cadela Brucutu dispara a latir e a correr e a assassina foge. Outra
preocupação é quando tem festa na casa do sítio: ao vermos a arrumação da
sacaria de carvão e o fumacê das panelas, temos que nos preparar para fugir da
pega. Logo entra no terreiro alguém com mãos vazias, a fim de enchê-las com
nossos pés. Para escapar da pega, há que correr e aí leva vantagem quem mais
abusa da cisca e se enche de proteínas. Melhor é pra quem está de choco, pois
gente não come galinha choca. Nesse caso,é de se dizer que o azar dá sorte.
A
novidade por aqui, é um movimento que está se formando pela criação de uma Delegacia de Defesa da Galinha, contra o
abuso dos galos. O nome da instituição é pomposo, mas a pompa se justifica pela
magnitude do objetivo. O movimento começou no terreiro vizinho, sob o comando
da galinha Gargantilha, a única
donzela em toda a redondeza. Dizem que ela consegue assim permanecer (donzela,
é claro) porque bota tanto boneco que
os galos se cansam e partem para outra. Esse seu nome se deve ao simulacro de
jóia que ela parece carregar atrelado ao pescoço e que a faz sempre igual, embora
diferente das demais. O projeto-de-lei
está para ser votado há meses, mas sempre falta quorum na Assembléia. Eu acho que,
das duas uma: ou é sabotagem dos
membros galos, que não têm interesse em ver o projeto aprovado, ou é um recurso
obstrutivo dos governistas, com medo de que a diminuição dos chocos venha a
comprometer a meta do PIB. De qualquer forma, um passo importante já foi dado
para a nossa libertação: aprovaram o Estatuto
da Franga e da Galinha, estando este apenas dependendo da sanção presidencial
para entrar em vigor. O Estatuto , em seu texto
muito bem redigido por juristas especializados em Direito dos Galináceos, prevê que as frangas e galinhas fazem jus a
dois dias por quinzena de abstinência sexual. Apesar de bem redigido, o texto
apresenta um vício: não prevê a proibição de horas extras e é bem capaz de os
galos exigirem expediente adicional para compensar a perda dos dois dias
quinzenais. Já há uma medida provisória
para incluir a proibição das horas extras no Estatuto, mas os galos não têm permitido quorum para a sua
aprovação em
plenário. Talvez o governo tenha que soltar alguns benefícios a fim de obter o tal quorum. Quem sabe,
uma importação de frangas...
É
preciso que, na próxima renovação da Assembléia, sejam eleitas mais galinhas do
que galos, a fim de termos os nossos direitos garantidos. O problema é achar
galinhas descompromissadas com as elites e que estejam dispostas a se
candidatar. A própria Gargantilha,
atualmente a única representante fêmea na Assembléia
dos Terreiros e que pertencia ao PG
(Partido dos Galináceos), não tem
chance de se reeleger. Ela foi expulsa do PG
assim que este assumiu o poder, por discordar das vagas públicas que lhe foram
reservadas. Gargantilha fundou um
novo partido, o PLUA (Partido pela Libertação Universal das Aves),
muito radical e sem foco na realidade. A não reeleição de Gargantilha vai nos deixar sem representação na próxima
legislatura, se novas candidatas não se elegerem.
Como
é difícil ser cidadã nesse mundo de terreiros. Que triste sina essa de ser
galinha eleitora sem opção de voto. É melhor morrer de gogo.
Juracy de Oliveira Paixão.
08/07/2006
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