quarta-feira, 11 de maio de 2016

Nós, Os Bichos...

Que triste sina esta de ser galinha


Nasci em uma Sexta-feira da Paixão. Já vim ao mundo piando. Comigo vieram três irmãs e dois irmãos. Após um có-có-có de controle, minha mãe abandonou as cascas rachadas dos nossos casulos e nos instou a ciscar. Assim teve início nossa amamentação.
            
Minha mãe chamava-se Messalina e ela bem que merecia o seu imponente nome: dava-se – literalmente – para todos os galos do nosso terreiro, vendia-se aos galos dos terreiros vizinhos por tão somente uma ou duas minhocas e pouco se lixava para o ato e o fato de se encher de filhotes sem pai conhecido. Costumava dizer que, como galinha, somente lhe restavam duas atitudes: “ser boa de choca e cria ou marchar para a panela de água quente”. Além do mais, afirmava: ”se não me dou, os galos me tomam, mais fortes como são”.
            
Segundo informação duvidosa da minha mãe Messalina, meu pai fora o galo Maroto, um macho de pescoço pelado, crista grande avermelhada e esporões de arrepiar qualquer vivente. Contava ela que todas as galinhas do terreiro eram apaixonadas pelo Maroto, mas ele tinha lá suas preferências: gostava das polacas, de pouca pena e rabo curto.
           
 Meu pai, caso tenha sido o Maroto, morreu de gogo antes da minha vinda à luz e minha mãe foi atropelada por uma carroça, mal eu entrava na adolescência. Não pude, tampouco, conviver com minhas irmãs e irmãos. As manas foram levadas para a feira da rua e, lá, vendidas. Os manos foram assados na brasa, durante uma festa de aniversário. Sobrevivi à venda porque, no dia da caçada das minhas irmãs, sumi de circulação, subindo num telheiro que havia ao lado do poleiro – sem que nem pra quê. Mera coincidência: cansados de me procurar, os nossos donos contentaram-se somente em colocar as manas no caçuá de viagem.
            
Nosso terreiro é bem provido: tem pé de araçá, pé de aroeira, pé de sapoti; tem um chiqueiro com um casal de leitões e quatro filhotes; tem o nosso poleiro de quatro degraus, além do cercado onde ficam os ninhos de chocar. Sim, porque chocar é a maldição e a salvação de toda galinha. Eu, na minha parca existência, já estou na quinta choca e já perdi a contas dos pintos que produzi. Se eu ganhasse uma bolsa maternidade, estaria milionária. Chocar é uma aporrinhação: fica-se acocorada uma eternidade sobre uma ruma de ovos que nem são nossos, a esperar que os danados se rompam e dêem crias à luz. Mal se bebe e quase não se come. Nascidos os diabinhos, lá vamos nós a ciscar com eles – quanto mais cedo aprendem o ofício da sobrevivência, mais cedo a gente se liberta da tarefa de mãe. Mal passado o resguardo do choco findo, há que se livrar dos galos , a fim de que tudo não recomece. Vida de galinha se resume nisso: ciscar, cocoricar, ser tomada pelos galos ou a eles se dar como fazia minha mãe Messalina, e recomeçar tudo – a fim de não cair no espeto sobre brasas, quando se escapa de uma panela fervente.
            
De tanto dar – querendo ou não – os humanos, nossos donos, apelidaram suas aventureiras de galinhas, o que não passa de uma grande injustiça com a nossa raça. Explico: nosso dono tem uma empregada (ela se diz secretária...) chamada Gioconda, que é casada com o lenhador Cornélio. Todo santo dia, mal o pobre do marido ombreia o machado e vai pro mato, a adúltera se aperta com a primeira calça que aparece: do vaqueiro ao patrão, do leiteiro ao sacristão. E faz essa leviandade com um ar de deboche e um sorriso mais pra cínico do que pra enigmático. Nesse contexto, as humanas aventureiras deveriam ser apelidadas de giocondas e não de galinhas – pobres de nós.
            
Aqui no sítio, do que não podemos nos queixar é de falta de comida: sai milho duas vezes por semana, pirão de farinha todo dia, casca de fruta vez sim e vez não, e ainda há o resultado de nosso ciscado: formigas, baratas, minhocas, lagartas, cocô dos bichos e dos meninos, semente disso e daquilo. É uma dieta bem equilibrada.
            
Para nós, o melhor dia é após a feira na rua: sempre volta uma ou outra que não foi vendida e conta as novidades. Minha prima Maricota, mesmo, voltou esta semana com uma estória pra lá de fantasiosa. Como ela é muito fofoqueira, é preciso dar um bom desconto. Espalhou aqui no terreiro que, num intervalo da feira, conseguiu manter conversação com duas galinhas brancas que lá estavam á venda. As tais brancas contaram serem oriundas de um negócio chamado granja. Disseram que nessa tal granja tudo é na base de grupos, formados por algumas poedeiras e uns poucos galos por grupo. Cada poedeira, depois de ser arrochada por um galo, é transferida para um novo local, com água pingando e ração bem à boca. Assim que se livram do ovo, esse é levado para uma galinha mecânica chamada chocadeira e lá nascem os pintinhos. Mal os filhotes alcançam a puberdade, os machos são separados em lotes e uma parte vai para um matadouro onde se transformam em “frangos congelados”.Os restantes que escapam da chacina vão abastecer os grupos das poedeiras, em substituição dos velhos, seus prováveis pais, que são condenados à brasa. As fêmeas seguem o destino habitual das galinhas: dar-se ou serem tomadas, pôr ovos e chocar. A estória carece de confirmação, até porque acho difícil galinha branca ter essa intimidade toda com uma mestiça igual à Maricota.
            
Por falar em frango, aqui temos outra injustiça dos humanos: apelidam gol fácil de frango e o goleiro que o sofre de frangueiro. Sabendo como é trabalhoso pegar esses nossos parentes/irmãos quando soltos no terreiro – os danados são rápidos e velozes na carreira – frango era para ser apelido de gol difícil.
            
Nosso expediente no terreiro é monótono e repetitivo: acordar com o ucuruncucum dos galos; bater asas para descer do poleiro; ciscar, logo, os molhados da madrugada para papar as minhocas em mudança; comer o pirão de farinha matutino; dar-se a , pelo menos, dois ou três galos por dia; comer, ciscar; comer,ciscar; subir num galho do pé de araçá para espiar a safada da Gioconda se atracando com a calça do momento. Se há choco, é chocar e chocar. Se há pinto, é andar ao som monocórdio do nosso próprio co-có-có, a ver se os pestinhas aprendem a arte da cisca e nos dão uma folga. Ao fim do dia, baixado o sol, voltar para o poleiro e dormir com os olhos meio fechados e meio abertos. Importante é torcer – e até rezar pro santo protetor das galinhas - para que não falte carne de vaca na cozinha do sítio. Se faltar, aí somente a sorte salva.
           
  Ia-me esquecendo: vez por outra ouve-se um co-có-CÓ-có-có-CÓ de dois tons, anunciando mais um ovo no mundo.
           
  Susto por aqui afora nos casos de falta de carne de vaca, somente nas noites de lua cheia: a raposa Sinistra resolve vir nos aperrear. A felicidade é que, mal ela chega, a cadela Brucutu dispara a latir e a correr e a assassina foge. Outra preocupação é quando tem festa na casa do sítio: ao vermos a arrumação da sacaria de carvão e o fumacê das panelas, temos que nos preparar para fugir da pega. Logo entra no terreiro alguém com mãos vazias, a fim de enchê-las com nossos pés. Para escapar da pega, há que correr e aí leva vantagem quem mais abusa da cisca e se enche de proteínas. Melhor é pra quem está de choco, pois gente não come galinha choca. Nesse caso,é de se dizer que o azar dá sorte.
            
A novidade por aqui, é um movimento que está se formando pela criação de uma Delegacia de Defesa da Galinha, contra o abuso dos galos. O nome da instituição é pomposo, mas a pompa se justifica pela magnitude do objetivo. O movimento começou no terreiro vizinho, sob o comando da galinha Gargantilha, a única donzela em toda a redondeza. Dizem que ela consegue assim permanecer (donzela, é claro) porque bota tanto boneco que os galos se cansam e partem para outra. Esse seu nome se deve ao simulacro de jóia que ela parece carregar atrelado ao pescoço e que a faz sempre igual, embora diferente das demais. O projeto-de-lei está para ser votado há meses, mas sempre falta quorum na Assembléia. Eu acho que, das duas uma: ou é sabotagem dos membros galos, que não têm interesse em ver o projeto aprovado, ou é um recurso obstrutivo dos governistas, com medo de que a diminuição dos chocos venha a comprometer a meta do PIB. De qualquer forma, um passo importante já foi dado para a nossa libertação: aprovaram o Estatuto da Franga e da Galinha, estando este apenas dependendo da sanção presidencial para entrar em vigor. O Estatuto, em seu texto muito bem redigido por juristas especializados em Direito dos Galináceos, prevê que as frangas e galinhas fazem jus a dois dias por quinzena de abstinência sexual. Apesar de bem redigido, o texto apresenta um vício: não prevê a proibição de horas extras e é bem capaz de os galos exigirem expediente adicional para compensar a perda dos dois dias quinzenais. Já há uma medida provisória para incluir a proibição das horas extras no Estatuto, mas os galos não têm permitido quorum para a sua aprovação em plenário. Talvez o governo tenha que soltar alguns benefícios a fim de obter o tal quorum. Quem sabe, uma importação de frangas...
           
  É preciso que, na próxima renovação da Assembléia, sejam eleitas mais galinhas do que galos, a fim de termos os nossos direitos garantidos. O problema é achar galinhas descompromissadas com as elites e que estejam dispostas a se candidatar. A própria Gargantilha, atualmente a única representante fêmea na Assembléia dos Terreiros e que pertencia ao PG (Partido dos Galináceos), não tem chance de se reeleger. Ela foi expulsa do PG assim que este assumiu o poder, por discordar das vagas públicas que lhe foram reservadas. Gargantilha fundou um novo partido, o PLUA (Partido pela Libertação Universal das Aves), muito radical e sem foco na realidade. A não reeleição de Gargantilha vai nos deixar sem representação na próxima legislatura, se novas candidatas não se elegerem.

           
 Como é difícil ser cidadã nesse mundo de terreiros. Que triste sina essa de ser galinha eleitora sem opção de voto. É melhor morrer de gogo.


Juracy de Oliveira Paixão.

08/07/2006

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